Um cavaleiro, montado em seu cavalo, com sua armadura reluzente e sua espada e escudo empunhados decidiu desbravar terras nunca antes visitadas. Tomou sua bagagem e saiu em uma cruzada pessoal, deixando para trás seus fantasmas, coisas que lhe faziam mal. Lembranças de tempos gloriosos, de batalhas vencidas, de conquistas inenarráveis, de heroísmo e bravura aclamados, tempos distantes. O cavaleiro pega então a estrada, e sozinho faz um balanço de tudo que já havia acontecido em sua vida. Ele começa pensando em sua infância, de tudo que aprendeu com seu pai, da educação recebida da mãe, e de como era fácil não ter de carregar fardo algum. Ele se lembra de suas aventuras, traquinagens, batalhas épicas, que aconteciam em sua mente, e que sempre resultavam em glórias e mais glórias. O cavaleiro foi crescendo, assim como suas responsabilidades. Já não havia tempo para imaginar aventuras, pois elas estavam à beira de se transformar em realidade. Ele se lembra de tudo que aprendeu com seu mestre, do dia em que empunhou uma espada pela primeira vez, da sua primeira montaria, seus primeiros treinamentos de batalha e estratégia. O cavaleiro faz uma pausa em sua viagem e se deita sob uma árvore para descansar, pois já há tempo que pegou a estrada e seu cavalo, assim como ele, já não é tão jovem. Ao deitar-se, ele adormece e sonha com tudo que havia pensado durante a viagem, e vê claramente as situações pelas quais passou, com o mínimo detalhe, como se fosse um filme. Em seus sonhos ele é grandioso, respeitado, famoso e conquistador, coisas que realmente foi, mas em escala não tão excepcional. Ele desperta do sonho com uma brisa forte, um cheiro de chuva chegando, e isso faz com que se apronte novamente para seguir viagem. Assim que monta em seu cavalo, volta a pensar na sua vida, só que agora já na fase adulta. Lembra-se da sua primeira batalha, de sua primeira vítima, e de como ela merecia o destino que ele havia lhe dado. Lembra de sua primeira noite em companhia de uma mulher, e de como ficou envergonhado ao ver um corpo feminino nu em sua frente. Lembra-se do sabor da torta de morangos de um vilarejo que freqüentava, do buquê do vinho que sempre lhe era servido, da companhia de amigos que já se foram em batalhas, e de tudo que lhe completava nessa fase de sua vida. O cavaleiro serviu sua Rainha durante muitos anos, e ela sempre lhe dizia que cavaleiro melhor não havia. Ninguém manejava uma espada tão bem, nem conseguia desmantelar exércitos com tanta facilidade quanto ele. Durante um tempo ele também se considerou incrível, e invencível também. Achava que era um deus e que nada poderia lhe ferir, ninguém era capaz de tal façanha. Já era noite quando o cavaleiro resolveu parar pela segunda vez, só que agora ele estava numa vila, então a melhor solução para aliviar seu cansaço seria uma boa estalagem. Como era um homem de costumes, foi ao lugar que sempre freqüentou, porém, o tempo havia mudado tudo por lá, e ele então percebeu que suas memórias ali já não existiam, como as pessoas que sempre lhe serviram. Mesmo assim se instalou no local, e chegando aos seus aposentos provisórios, foi logo se despindo de sua pesada armadura e de todo seu armamento. Entrou na água fervente da banheira totalmente despido, acompanhado somente de uma garrafa de vinho barato, que lhe foi oferecido como cortesia. Enquanto se banhava, passava a mão em suas cicatrizes espalhadas pelo corpo, e lembrava exatamente como cada uma tinha sido feita, e também, quem havia lhes proporcionado. Todas já eram antigas, e os guerreiros que lhe tinham causado as cicatrizes, já não estavam em vida. Quando a água já havia esfriado e a segunda garrafa esvaziado, ele se levantou, cambaleando, e chegou até a cama, que ele acreditava ser um pouco mais macia, pelo que se lembrava. Quando adormeceu, voltou a sonhar com suas batalhas, e uma em especial sempre lhe ocorria. Era a mais épica de todas, e também era àquela que lhe fez se retirar dos campos de batalha. Havia acontecido já havia trinta anos, mas ele se lembra perfeitamente de todos os detalhes. Ele estava no comando de mais de cinco mil homens, e seus inimigos tinham pelo menos o triplo do seu contingente. Ele se lembra perfeitamente dos rostos de seus homens, diante da iminente derrota, se apegando em suas crenças, pedindo perdão e agradecendo pela vida que tiveram. Ele se lembra de seu discurso forte, com palavras que havia aprendido com o pai, que faziam ferver o sangue de seus homens. Ele corria na frente de seu exército, sobre o seu cavalo, sob sua armadura, e a chuva que caia se misturava às lágrimas daqueles que já tinham abraçado a morte, antes mesmo de sua chegada. O cavaleiro termina seu discurso e os urros são ouvidos há milhas de distância, e o barulho das espadas e lanças contra os escudos se torna ensurdecedor. Ele ordena o ataque, e seus homens seguem em frente, montados em seus cavalos ou não, contra uma barreira de lanças e escudos que ficaram imóveis, mesmo depois da ordem de ataque inimiga. Ele lembra perfeitamente de como as lanças perfuravam os corpos, e das expressões de dor e desespero de seus homens, quando encontravam a morte. Assim que a primeira defesa inimiga ruiu, ele se juntou aos homens que comandava e saiu em um trote furioso com seu cavalo, e por onde passava, feria mortalmente o inimigo. Depois de três dias de batalha, ele finalmente baixou sua espada, e olhou em sua volta e quase não conseguia ver a terra, pois os corpos caídos cobriam praticamente todo o campo de batalha. Ele enfim encontra seu cavalo, ferido e amuado, e lhe faz um curativo provisório, conseguindo lhe tirar dali. Seus homens, que agora não passavam de quinhentos, entoavam cânticos de vitória misturados com um choro pela perda de amigos, irmãos, pais e filhos, e cantavam enquanto recolhiam os corpos ou o que havia restado deles. O cavaleiro então chora, não por estar vivo, mas por não ter ninguém ali para chorar. E é isso que lhe faz decidir abandonar essa vida de batalhas, e viajar para algum lugar onde possa encontrar alguém por quem possa chorar um dia.
Quando o cavaleiro desperta, já é dia, e o sol invade seu quarto e aquece seu corpo. Ele se levanta e já começa a se vestir, não pode perder tempo, tem de continuar a viagem. Depois de vestido e devidamente alimentado, ele vai ao estábulo e toma seu velho cavalo de volta, um tanto quanto revigorado depois de uma noite de descanso. Montado em seu cavalo, ele volta para a estrada e segue em busca de sua próxima aventura, que espera ser a última. Encontrar o motivo de seu pranto, ainda desconhecido. Essa é a única batalha que ele deseja perder, por isso deixa pelo caminho sua espada, seu escudo, sua armadura, para não ter como se defender do amor que busca encontrar.